Em 2021, os aportes em startups no Brasil chegaram a US$ 8,9 bilhões, 150% a mais que em 2020. Neste ano, o ímpeto arrefeceu, o perfil do empreendedor mudou e o dinheiro passa por crivo mais rigoroso.

Os investimentos deixaram de ser loteria. Marcelo Deschamps, presidente do conselho da Gávea Angels.

O grupo Gávea Angels surgiu em 2002, a partir do trabalho do Núcleo de Estudos e Pesquisas (NEP), do Instituto Gênesis PUC Rio, e de instituições estrangeiras como International Development Research Center (IDCR), vinculado ao governo do Canadá. Sua criação marcou o início da história do investimento anjo no Brasil e na América Latina. O grupo definiu parâmetros para testar a tese, montar o time inicial e desenvolver a viabilidade de um produto ou serviço — ou seja, tirar uma ideia do papel. Desde outubro, o Gávea tem como presidente do conselho Marcelo Deschamps, especialista em regulação financeira, bancária e mercado de capitais, com mais de 20 anos de experiência em gestão de riscos e análise de negócios. Nesta entrevista, o investidor falou da evolução da cultura de aportes iniciais no Brasil, dos setores mais procurados, do boom do mercado (em 2020 e 2021) e do atual momento de estabilidade, diante de inflação e juros altos.

DINHEIRO – O investimento anjo é rentável?
MARCELO DESCHAMPS É, mas a longo prazo. Uma startup não vai virar uma Uber na semana que vem. Para termos uma saída lucrativa leva-se ao menos cinco anos. Entramos numa fase inicial da startup, em que muitas têm dois ou três clientes, com receita pequena. Tem seu tempo para virar uma empresa de verdade.

Quais eram as maiores dificuldades para fazer investimentos em statups 20 anos atrás, quando o Gávea Angels nasceu?
Os primeiros anos do Gávea Angels foram para tentar explicar o conceito, educar o mercado e as startups, que passariam a ter uma nova oportunidade de captar dinheiro. Quase todas começam com dois ou três fundadores, com dinheiro da família ou de rescisão trabalhista. Em determinado momento precisam de dinheiro de terceiros. E no passado, na maioria das vezes, era do banco.

Em 2002, quando nasceu o Gávea, a web ainda engatinhava. Encontrar as startups hoje se tornou mais fácil, não?
Na maior parte das vezes as startups provinham das universidades. Eram projetos acadêmicos, de pesquisas, que viravam empresas. Os conceitos de unicórnio, de startup, não existiam. Quando começaram a chegar ao Brasil grandes empresas como Airbnb, Uber, que são gigantes, mas começaram com dinheiro de investidores-anjo, esses termos começaram a ser usados com mais intensidade no País. Hoje é mais fácil com internet e com os muitos investidores.

O momento econômico do Brasil e do mundo também era outro. A alocação de investimentos mudou muito?
Tínhamos fatores como inflação e taxa de juros absurdas. As pessoas preferiam ganhar 10% ou 15% com a taxa Selic do que colocar seu dinheiro numa startup, com o risco de quebrar. Com o Plano Real [em 1994] passamos a ter um cenário econômico mais estável, o que gera uma quantidade de investidores dispostos a rentabilizar melhor seu capital. Se inicia uma mudança de cultura, com pessoas interessadas em investir no mundo real, numa ideia, numa empresa que vai crescer, gerar emprego e ajudar no desenvolvimento do País.

Os setores em que os investidores estão de olho mudaram muito nessas duas décadas?
Basicamente continuam sendo quatro grandes. A área financeira, com as fintechs, no contexto da bancarização dos desbancarizados, com parte regulatória avançando. Educação, com as edtechs, pela necessidade de avançar no ensino remoto. As healthtechs, pela telemedicina, com evolução de legislação. E a mobilidade, que sempre está evoluindo. Alguns setores que têm despontado, como soluções para delivery e o agronegócio, que passa por transformação e automatização com a chegada das gerações mais novas ao comando, em substituição aos antigos fazendeiros.

A academia estava bastante presente no começo dessa história, tanto para formalizar os investimentos anjo quanto para criar as empresas. Ela ainda está presente ou saiu do circuito?
Sempre está presente. Muitos dos empreendedores que montam as startups atuais têm base sólida acadêmica e importante vivência profissional. Nossos associados também têm essas características. Por isso deixamos de ter apenas análises intuitivas, com achismos, empírico, para ser algo mais técnico. Temos parceria, por exemplo, com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD). Temos associados e aproximação com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, com a Unicamp… Temos a academia próxima de nós para validação de produtos, de ideias.

O nível dos empreendedores brasileiros melhorou ao longo dos anos?
Sim. Mais gente tem se formado em graduação e especialização. As faculdades são melhores e em geral também possuem um viés mais empreendedor atualmente. Em outra característica, mais macro, as grandes empresas começaram a enxugar seu organograma, com quantidades hierárquicas menores. Com isso, existe quantidade imensa de pessoas bem formadas que não conseguem posições gerenciais nas companhias. Esses profissionais começaram a empreender, usando a seu favor a tecnologia, que está cada vez mais democrática e acessível.

O desemprego tem impulsionado a geração de novos negócios?
Não diria o desemprego, mas a reestruturação das empresas, que passaram a trabalhar com menos gente. Profissionais qualificados passaram a empreender. E não só isso. As pessoas que estão se formando agora não querem trabalhar em uma grande empresa, elas querem montar sua própria. A minha geração tinha muito mais dificuldade para empreender e por isso queria atuar em grandes companhias, ser funcionário público… As atuais gerações querem fazer faculdade, sair e montar sua empresa.

As próprias corporações estão criando seus fundos de investimentos em startups. Esse movimento é positivo?
Várias empresas grandes têm programa de Venture Corporate, que vai atrás das startups para resolver seus problemas ou os do mercado. Isso é mais um incentivo a novos empreendedores. Podemos entrar em parceria e ser complementar.

Muitas startups não vingam. A depender do instituto e do ano do estudo, a mortalidade varia entre 40% e 75% nos primeiros cinco anos. O que fazer para evitar que isso ocorra?
Trabalhamos com o conceito smart money. Não é só colocar dinheiro, é dar consultoria e suporte também. Se não, vira uma aposta. Temos metodologia para um negócio que é subjetivo. Também não é gerenciar a empresa para o empreendedor. Queremos empreendedores engajados. Importante também é monitorar. Uma empresa não morre do dia para a noite. Ela vai morrendo aos poucos.

Em 2021, os investimentos em startups no País atingiram US$ 8,9 bilhões, 150% a mais que em 2020. Em 2022, com alta taxa de inflação e a elevação de juros mundialmente, ficaram mais estagnados. Como avalia esse atual momento?
Em geral, quando se tem inflação baixa e juros baixos, há propensão de as pessoas aportarem mais em startups. Em 2022, sentimos que o cenário, no geral, teve menos aportes, mas por outro lado tivemos startups de melhor qualidade. Aquela fase de um cara ter a ideia de fazer qualquer coisa e pegar um cheque, desapareceu. Tivemos esse fenômeno, mas mudou o perfil. As startups que chegaram para a gente em 2022 são de pessoas com mais experiência, e empresas mais maduras, com estratégias mais maduras. Nossa expectativa é de que tenhamos juros e inflação menores em 2023 e em 2024 e comecemos a ter mais startups investidas novamente.

Mas não existe dinheiro em abundância para ser investido, certo?
Ficamos um pouco mais com os pés no chão, mais do que éramos. Tem muita coisa em startup que é modinha e que daqui a seis meses vai ter muita gente fazendo a mesma coisa, com mais caixa. E, em dois ou três anos, vai sobreviver só uma. Os investimentos, de forma geral, deixaram de ser aquela loteria de 2020 e 2021, de apostar em um monte de startup para ver qual daria certo.

A estabilização é benéfica para o setor?
Serviu para nos aproximar de startups em que já tínhamos investido, um processo trabalhoso. Neste ano, pegamos as empresas em que aportamos nos últimos três anos para fazer um mergulho mais detalhado. Algumas precisavam de outra rodada de aporte. Enquanto outras tiveram de passar por realinhamento, a partir da nossa mentoria.

Os investimentos deixaram de ser loteria
18/11/2022 – Istoé Dinheiro

Data publicação

18/11/2022

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